A imagem da tragédia do Bateau Mouche que me vem à cabeça é a de um casal - ele trajando um smoking encharcado e ela metida num elegante longo branco -, ambos sentados no meio-fio, no interior do Iate Clube do Rio de Janeiro, acariciando o rosto de um menino, de aproximadamente 8 anos, e cujo corpo estava inerte e ensopado de água do mar, e que, certamente, fora uma das vítimas mais novas entre as 55 pessoas que morreram no naufrágio do Bateau Mouche, numa noite de lua cheia de 31 de dezembro de 1988.
A cena fora testemunhada por mim e por um grupo de guardas-vidas à distância, já na primeira madrugada do ano de 1989. Eu tinha 26 anos e há três havia ingressado na profissão de jornalista em busca dos sonhos forjados na faculdade e de afirmação profissional. Repórter do jornal O Dia, fui escalado para trabalhar no plantão do réveillon. Minha missão era simples: registrar a passagem de ano na delegacia do Posto 6, em Copacabana. Pauta mais emocionante para um "foca"(jornalista inexperiente),impossível. Ledo engano, emoção maior estava por vir. Após tomar conhecimento do naufrágio, abandonei a delegacia e corri para o Iate Clube, um dos locais para onde os primeiros corpos foram levados pelos bombeiros. Me recordo que a cobertura inicial do jornal coube a mim e às repórteres Hilka Teles e Salete Lisboa, que seguiram, respectivamente, para a Marina da Glória e para a Praia da Urca.
O naufrágio do Bateau Mouche impôs a mim uma das experiência mais dolorosas e, ao mesmo tempo, significativas da minha vida profissonal. Bernardo Amaral Goulart, filho da atriz Yara Amaral, que morreu no naufrágio, resume com propriedade o que a tragédia representou em sua vida.
“Até ela (Yara Amaral)perdeu a identidade. Ela não é mais a atriz que ganhou três Molière, ela não é mais a atriz que fez, sei lá, 28 novelas. Não é atriz que fez 50 peças, não é uma das atrizes mais laureadas - não é mais. É a atriz que morreu no Bateau Mouche. Quem é Yara Amaral? É a atriz que morreu no Bateau Mouche”, discursa o filho da atriz, coberto de razão.
Eu me limito a dizer que o Bateau Mouche foi e sempre será uma espécie de ícone da ganância, do desprezo pela vida humana e da falta de escrúpulos de um grupo de empresários espanhóis que até hoje devem desdenhar do sistema penal brasileiro.
Decorridos 18 anos do primeiro julgamento, em 1990, todos foram inocentados. A estratégia de defesa dos acusados era tão lacônica quanto estúpida: eles - os empresários - desconheciam os riscos da embarcação, que ganhou o mar graças a uma licença expedida pela Marinha (Capitania dos Portos).
Sem dúvida, a impunidade que até os dias de hoje marca o naufrágio da embarcação, afogou parte dos meus sonhos, um a um, nascidos anos atrás, quando ainda frequentava os bancos da faculdade.
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