
Por Uaracyr Sampaio Tavares
Não faz muito tempo, testemunhamos a comemoração dos 200 anos da Polícia Civil no Brasil, transcorrendo, até aqui, vários eventos festivos em homenagem merecida a esta bicentenária Instituição, instituída em 09 de maio de 1808, por ato do soberano, D. João VI, repetindo, no solo brasileiro, o modelo confiado ao Marquês de Pombal, na Metrópole, porém, deferido ao nosso Patrono, Desembargador do Paço, o Dr. Paulo Fernandes Viana.
Consultando nossa história, lembramos a necessidade de reverenciar mais um momento histórico, qual o do centenário da assinatura do Decreto nº 1970, de 1º de outubro de 1908, e início da construção do prédio-sede da Polícia Central, que o Exmº. Senhor Presidente da República, o Dr. Nilo Peçanha, precisamente, após 17 meses de trabalho duro, no seu salão de honra e na presença de várias autoridades, dentre as quais o Ilustre Senhor Chefe de Polícia, o Dr. Leoni Ramos, o declarou solenemente inaugurado.
Cuida-se de um belíssimo edifício, sem dúvida, cujas instalações percorremos ainda meninos, em visitação escolar, o que talvez tenha influenciado o nosso interesse pelo ingresso nos quadros policiais, e são vários que ocupamos. O seu projeto mereceu a assinatura do arquiteto Heitor de Mello, na Secretaria do Ministério da Justiça e Negócios Interiores.
Duas placas, cunhadas em bronze, assinalam o início da construção e de sua inauguração: 1908 e 1910. Nos idos de 1960, observamos que ali, logo na entrada, se continha um busto, lavrado em bronze, que se atribuía ao Detetive Milton Le Cocq, morto em serviço, cujo acontecimento inspirou a criação de uma scuderie de igual nome.
Dos registros consultados, suas atas, descortina-se que, à direita de quem entra naquele imóvel, estava instalada a Inspetoria da Guarda-Civil, a que integramos, ocupando todo o primeiro pavimento do lado da Rua da Relação, havendo também ali, além do gabinete do Inspetor e de uma sala de espera, a Secretaria da Guarda, com seus arquivos, almoxarifado e sala dos guardas.
Adiante, via-se a Inspetoria de Veículos, de boas instalações, abrigando o gabinete do inspetor, sala de registro de veículos e condutores, secretaria e arquivo.
O Depósito de Presos, com xadrezes amplos, arejados e higiênicos, achava-se instalado do lado interno, ainda no primeiro pavimento, de modo a facilitar o acesso e a saída de presos, já que os veículos transportadores podiam vir até o portão interior. Nos idos de 1960, sob a direção do Inspetor Oswaldo e sua esposa, este depósito serviu de carceragem feminina, onde preponderavam o asseio, o respeito à sua dignidade e a organização de que se incumbia o casal.
Elogiados por todos, confessamos não conhecer nada igual !
A secretaria do Depósito e o gabinete do administrador se localizavam próximos. Na sala imediata, via-se a 2ª Seção da Secretaria de Polícia, exatamente aquela que tinha a seu cargo tudo quanto se referia à reclusão de indivíduos, na Casa de Detenção e nos estabelecimentos correicionais ou de assistência, à internação de indivíduos, em asilos, e à reclusão de loucos ou indigentes, no Hospício Nacional.
Na sala fronteira, estava o depósito dos objetos arrecadados dos presos recolhidos ao Depósito. Ao lado esquerdo da entrada principal, via-se a instalação elétrica, telegráfica e telefônica, a farmácia da Guarda-Civil (a farmácia, gente !!!), a Escola Policial da mesma Inspetoria e o Corpo da Guarda, onde, mais tarde, já policiais, a ocupamos, nos idos de 1960.
Uma escada de mármore, atapetada, corrimão de metal amarelo, sempre polido, conduzia, como hoje, ao primeiro andar, onde, porém, no passado, se avistava, bem em frente, o salão nobre, simples, porém, severo na sua ornamentação mural, com altos relevos e pinturas a fresco no teto.
O salão era guarnecido de um mobiliário muito fino, de fino gosto, estando a sua esquerda o gabinete de trabalho do Chefe de Polícia, que testemunhamos, por igual, mobiliado com conforto. Ali, trabalhamos algumas vezes, coadjuvando os delegados de polícia titulares, designados para responder pelo expediente, em plantões, na ausência do Chefe de Polícia.
Mais tarde, quando ocupamos o cargo de Subsecretário de Estado de Polícia Civil, guardada a experiência do abandono e precariedade das instalações antigas, propusemos à Administração da ocasião que aquele serviço fosse transferido do prédio velho para o andar térreo da sede-nova, à esquerda de quem ali ingressa, após obra de adaptação, já que, antes, funcionara uma dependência do antigo Departamento de Administração, atual DGAF.
Em tal espaço, ainda por nossa sugestão, funcionou, com a saída da referida unidade, o extinto Centro de Atendimento à Mulher – CEPAM, na verdade, o embrião da primeira Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher – DEAM, posteriormente, instalada no antigo prédio da Avenida Presidente Vargas, 1.248, ex-complexo das unidades especializadas, antes de sua transferência para o prédio da Rua Silvino Montenegro, Santo Cristo. Na atualidade, em seu lugar, vêem-se uma praça, que separa o Colégio Rivadávia Correa da DPCA. Nas proximidades, a antiga sede do Palácio Itamarati, convertida, agora, num Escritório de Representação do Ministério das Relações Exteriores, cujo prédio alberga também o Museu Histórico e Diplomático, o Arquivo Histórico e a Mapoteca.
O Dr. José Gomes Sobrinho, um delegado de polícia da maior grandeza, que marcou sua presença entre nós, ao saber das dificuldades na localização imediata de um próprio estadual para abrigá-la, com seu espírito público dos mais assinalados, após a demonstração da necessidade que lhe narrei, cedeu parte de sua unidade para atender aos reclamos.
A primeira titular da DEAM-CENTRO, convidada, por nós, pessoalmente, após uma reunião tumultuada com um grupo de feministas, foi a Doutora Marly Preston, delegado de polícia, hoje, aposentada, à época, lotada na Academia Estadual de Polícia Silvio Terra - ACADEPOL.
Marly Preston, cuja experiência nos deu o norte para a criação de outras unidades, desempenhou um papel importante na consolidação desta iniciativa, nova, para nós, porém, já aplicada no Estado de São Paulo. Para Niterói, por falta de delegado do sexo feminino, permitiu-se designar o Dr. Renê, cujo desempenho, por sinal, excelente, mereceu da comunidade e da própria administração policial os melhores encômios.
Esvaziado aquele espaço, sugerimos que nele se instalasse, então, a Delegacia Superior de Dia, cujos estudos levaram em consideração a necessidade da criação de uma sala específica para atendimento das partes, de um gabinete digno para o delegado de plantão e seus auxiliares, inclusive, com local suficiente à análise de assuntos, onde se deva guardar total discrição, e, enfim, alojamento em condições de abrigar os servidores de serviço.
Passados alguns anos, já à disposição da Secretaria de Segurança Pública, atual SESEG, para onde fomos removidos, segundo informações, pelo nosso perfil, na elaboração do esboço da estrutura organizacional básica da Polícia Civil, propusemos, também, que se criasse, efetivamente, em lugar de uma “Delegacia Superior de Dia”, uma verdadeira delegacia policial, sob o título de “Delegacia Supervisora”, com um titular, substituto e adjuntos, podendo, inclusive, utilizar os serviços de apoio e cartorários da Coinpol. Valeu porque se orienta pelas normas de uma delegacia legal. São coisas que chegam para somar, sem dúvida.
Em nossa ótica, o titular já não seria mais alguém designado para ocupar um espaço, como antes, dissociado da administração policial, senão pessoa de livre escolha do Chefe de Polícia, para interpretá-lo, em sua ausência, e de seus auxiliares diretos, daí por que sugerimos, no esboço, o aporte de cargo comissionado, o que vingou, mesmo hoje, de valor defasado, conquanto a distinção subsista, para atender a seus fins.
Voltando aos comentários do Palácio da Polícia (com o cuidado de não digredir muito, pois, coisa perigosa nem sempre bem compreendida), ao salão nobre, seguia-se a sala do oficial de gabinete, denominação empregada, à época, contígua à de espera, aos aposentos do Chefe de Polícia, que se compunha de salão de juntar, sala para trato de assuntos reservados, quarto de dormir, sala de banho e toilette, e, também, as dependências do ajudante de ordens.
Ocupava a Secretaria toda a ala esquerda, constituída de um vasto salão, muito iluminado e arejado, precedendo ao gabinete do secretário-geral uma sala de espera, com a galeria dos Chefes de Polícia, cujas fotografias, mais tarde, pareceram-me as que abrilhantavam o Gabinete do Diretor da Enfermaria Felinto Müller, hoje, Hospital da Polícia Civil José da Costa Moreira, designação, inclusive, que propusemos, em homenagem a um antigo diretor, ouvindo os seus funcionários.
Por conveniência do serviço, a comunicação do Gabinete de Identificação e de Estatística, com o Depósito de Presos, se operava por meio de uma escada interna, toda de ferro, vista por nós em desuso.
A parte fronteira à entrada principal estava reservada ao Gabinete de Identificação e de Estatística, mais tarde, Instituto de Identificação da Polícia do Distrito Federal, e, pelo Decreto-Lei nº 3.793, de 04 de dezembro de 1941, recebeu a denominação de Instituto Félix Pacheco, em homenagem a José Alves Felix Pacheco, que iniciou, no Rio de Janeiro, no ano de 1902, a tomada da impressão digital nas fichas antropométricas*. Na atualidade, denomina-se o órgão Instituto de Identificação Félix Pacheco, com a sigla IIFP.
Ao lado do Gabinete de Identificação, situava-se uma tesouraria, que, por igual, conhecemos, composta de uma grande sala, onde chegamos a receber nossos vencimentos, no passado; outra menor, ao lado, um pequeno arquivo e a casa forte. Seguia-se outra, destinada à imprensa, cujos profissionais cobriam diariamente a Chefatura de Polícia.
Ao lado direito da entrada, estava instalada uma portaria, ocupando as delegacias auxiliares toda a ala da Rua dos Inválidos (3ª, 2ª e 1ª), constituídas de salas de audiência, cartório, gabinete de trabalho e cômodos particulares das autoridades policiais.
As fachadas que dão acesso às Ruas da Relação e Inválidos têm um segundo andar, sendo que, no primeiro, estava instalado o Serviço Médico Legal; do lado da Rua dos Inválidos, estavam abrigados o arquivo e a biblioteca (cujo acervo foi remetido à Acadepol Silvio Terra, na administração Villarinho, a qual integramos), em dois salões, e a Inspetoria de Investigações e Segurança Pública, em diversas salas.
Sob a grande cúpula central do edifício, montou-se ali o Museu Criminal da Polícia, depois, transformada em dependência do DOPS/DPPS, que ali funcionou, até o início de 1983. O Museu, hoje, instalado no 2º andar, do vetusto Palácio, funcionou algum tempo na Escola de Polícia, na Rua Joaquim Palhares, no Rio de Janeiro (onde fizemos o curso de formação profissional, para ingresso no primeiro cargo que ocupamos na Polícia), precedendo a atual Acadepol Silvio Terra, sendo seu primeiro diretor o Coronel do Exército Brasileiro, Renato Rocha.
De notar-se que o necrotério do Instituto Médico Legal, antes de sua transferência para a Rua dos Inválidos nº 152, localizava-se em edifício à parte, de um só pavimento, do lado da Rua da Relação, obedecendo, à época, às menores exigências do serviço, de modo a ser havido como modelar. Deste prédio, que, também, conhecemos, no passado, antes de sua demolição, restou apenas a fachada, que costumo designar como réplica do “coliseu”, servindo o seu terreno de estacionamento de veículos policiais. O imóvel se separava do prédio principal da sede velha por um portão de ferro, que ainda se vê no local.
Observa-se, ainda, no paredão que servia de sua fachada, um dos símbolos usados ultimamente em conexão com a medicina. A conferir porque temos a absoluta certeza de que poucos são os policiais que guardam a curiosidade deste detalhe. A conferir porque, na medicina, pelo que temos observado, dois são os símbolos: o de Asclépio, representado por um bastão tosco com uma serpente em volta, e o de Hermes, caduceu, consistente em um bastão mais bem trabalhado, com duas serpentes, dispostas em espirais ascendentes, simétricas e opostas, e com duas asas na sua extremidade superior. Mera curiosidade! Não lembramos, agora, qual dos símbolos permanece lá: se o de Asclépio ou o de Hermes.
E mais. Além da sala de necropsias, com arquibancadas, destinadas à assistência e aulas práticas de alunos das Faculdades de Medicina e de Direito (tudo pensado, gente !), dispunha ainda de outras para o uso do seu administrador e preparação de cadáveres a necropsiar (usava-se a expressão autopsiar, muito criticada pelos doutos, por esta designar um auto exame, o que é impossível realizar-se pelo morto). O necrotério dispunha de um depósito com nove mesas, sala para exposição de cadáveres conservados, e, enfim, de um compartimento destinado aos médicos.
À esquerda, ultrapassando os imóveis da atual sede da 5ª Delegacia Policial, vê-se, em frente à sede da Associação dos Delegados – Adepol/RJ, imóvel em ruína, onde funcionou, até pouco tempo, um estacionamento de veículos automotores, imóvel este, de algum tempo, reservado à construção de um complexo hoteleiro, porém, abortado pelo tombamento de todo o complexo, incluído ali o antigo bar Esmeralda (restaurante de típica comida caseira, originariamente, freqüentado por policiais, jornalistas, artistas, bancários, comerciantes, e, posteriormente, por funcionários das empresas que se instalaram ao longo da Avenida Chile e da Rua do Lavradio).
Dos escombros, decorrentes do abandono que se seguiu ao tombamento destes imóveis, cuja calçada, ao longo, durante muito tempo, se viu assinalada com uma fita da Defesa Civil, é-nos possível visualizar, na sua fachada (outro filhote de “Coliseu” ?), uma ferradura (o policial detalhista percebe a oculi nu, por sua dimensão), onde, no passado, foram edificadas as cocheiras e a garagem da polícia, a guarda de arreios e 36 estribarias, montadas de modo a facilitar o asseio nesta parte do edifício.
O tempo passou. O chamado Palácio da Polícia, próprio público, ainda que mantenha sua linha arquitetônica originária, em grande parte não desfigurada, foi tombado por um ato político que, a nosso ver, não expressa a sua importância, senão que teria ali abrigado presos políticos, seus embates, esquecida, talvez, a sua verdadeira história, que se confunde com a do Rio de Janeiro.
A inauguração do Palácio foi um feito histórico que reuniu, a um só tempo, pessoas as mais ilustres da vida pública brasileira, como o Presidente Nilo Peçanha, ex-ministros da República, dos Tribunais Superiores, magistrados, Chefes de Polícia e outros, como o Professor Esmeraldino Bandeira, Leoni Ramos, Alfredo Pinto Vieira de Melo, André Gustavo Paulo de Frontin, Generais Thaumaturgo de Azevedo e Bento Monteiro, Astolfho Vieira Resende, Eurico Cruz, Elmano Gomes Cardim, Pedro Nunes Bulamarqui, Edgard Simões Correa, Henrique José do Carmo Neto, Edgard Costa, Paulo José Murta, MARIO TOBIAS FIGUEIRA DE MELLO, Silva Paranhos, do Jornal do Commércio, José de Sá Osório e Jarbas de Carvalho, d’O Paíz, J. Barreiros, d’A Imprensa, José Emílio de Almeida Mello, Afffonso Magalhães, do Diário de Notícias, dentre outros.
Sua arquitetura, de fino trato, que completou no dia 1º de outubro, 100 anos, pareceu-nos, porém, esquecida!
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* Para alguns estudiosos, o sistema antropométrico foi criado por Alphonso Bertillon, funcionário da Polícia de Paris. Para outros, ele apenas o desenvolveu. Universalmente, é reconhecido como o primeiro método científico de identificação, tomando por base os seus dados, em descrição e sinais individuais. Os dados fundamentam-se na fixidez do esqueleto humano, após 20 anos, inspirando-se nas onze medidas preconizadas pelo autor. O criminoso, por este sistema, era submetido à rigorosa inspeção física, tirando-se-lhe as medidas somáticas, classificando-se seus sinais, anomalias e outros caracteres individualizantes. Completava-se com a fotografia sinalética, o retrato falado, e, posteriormente, Bertillon acresceu as impressões digitais, na ficha de identificação do criminoso (V. “A INVESTIGAÇÃO POLICIAL E A IDENTIFICAÇÃO DATILOSCÓPICA”, de UARACYR SAMPAIO TAVARES, in “Revista de Polícia” – ADEPOL-RJ, v. Nº 4, 1984, págs. 51/73).
UARACYR SAMPAIO TAVARES é Delegado de Polícia
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